Todo mundo sabe: o mercado de trabalho no Brasil é ponto de convergência de uma infinita e sempre crescente normatização. Há material para todos os gostos. Vai do saudável ao demagógico. Do feito para complicar ao absolutamente incompreensível. Quando se acrescenta a isso, por um lado, o pequeno valor atribuído por tantos magistrados ao que está escrito na lei e, por outro, o infinito amor de tantos juízes ao que eles monocraticamente acham da vida, tem-se um quadro caótico, dentro de cuja moldura pode aparecer qualquer coisa. Até justiça.
Não, não estou exagerando. Isso é tão verdadeiro que o Tribunal Superior do Trabalho resolveu parar durante toda esta semana numa tentativa de sair do enrosco e acabar com a consequência mais visível de tal situação: sentenças contraditórias sobre causas idênticas, que "comprometem a credibilidade da justiça trabalhista e causam indignação às partes". Note-se que essa realidade nada tem de recente nem é exclusividade da justiça do trabalho. Vou relatar fato ocorrido numa vara de Porto Alegre, segundo ouvi há quase quarenta anos de um amigo procurador do Estado.
Um advogado comparece para audiência, expõe sua tese e perde. Dias mais tarde, volta à mesma vara defendendo a tese oposta e tranquiliza o cliente: "Essa está no papo. Conheço a posição do juiz". Cheio de confiança, entra para a sala de audiências e... perde novamente. Enquanto junta seus papéis e os enfia, furioso, dentro da pasta, o advogado resmunga entre dentes: "Sinto-me nesta vara como o flautim do czar". O magistrado pede que ele esclareça o que quer dizer. Ele recusa. O juiz insiste. E o advogado, constrangido, acaba contando a história do flautim do czar.
Aqui vai ela. "Os mongóis estavam invadindo a Rússia. Numa determinada batalha, em que os russos levavam a pior, a banda, sentindo a derrota, executou com impressionante vigor o hino do czar (embora à época das invasões mongóis ainda não houvessem czares nos principados russos, a história vai como foi contada). Essa arremetida cívico-musical empurrou os combatentes para a reação e para uma inesperada vitória. O czar, sabendo do fato, mandou presentear os integrantes da banda com tantas moedas de ouro quantas coubessem no seu instrumento de trabalho. O sujeito da tuba ficou rico e o do flautim não recebeu uma moedinha sequer. Meses mais tarde, em nova batalha, repete-se a situação, mas foi a banda mongol que levou vantagem. Desta feita, encolerizado com a derrota, o czar determinou que cada membro da banda fosse punido com a introdução do respectivo instrumento de trabalho no - digamos assim - trecho final de seu tubo digestivo. E a pena só pode ser cumprida no infeliz do flautim".
É lamentável e é preocupante, mas essa anedota reflete a realidade comum no judiciário brasileiro, com a sua excessiva politização, com o pouco respeito à lei escrita, com o uso indevido e o abuso interpretativo dos princípios constitucionais segundo a ideologia de cada um (prática que acaba de ser solenizada pelo próprio STF). O nome do monstrengo gerado é este: insegurança jurídica. Como natural consequência dela, o cidadão, antes de agir, em vez de ler a lei, ou de ouvir um advogado, deve consultar o juiz.
Autor: Percival Puggina (66) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões. Difusão. Geraldo Porci de Araújo. 23/5/2011
Não, não estou exagerando. Isso é tão verdadeiro que o Tribunal Superior do Trabalho resolveu parar durante toda esta semana numa tentativa de sair do enrosco e acabar com a consequência mais visível de tal situação: sentenças contraditórias sobre causas idênticas, que "comprometem a credibilidade da justiça trabalhista e causam indignação às partes". Note-se que essa realidade nada tem de recente nem é exclusividade da justiça do trabalho. Vou relatar fato ocorrido numa vara de Porto Alegre, segundo ouvi há quase quarenta anos de um amigo procurador do Estado.
Um advogado comparece para audiência, expõe sua tese e perde. Dias mais tarde, volta à mesma vara defendendo a tese oposta e tranquiliza o cliente: "Essa está no papo. Conheço a posição do juiz". Cheio de confiança, entra para a sala de audiências e... perde novamente. Enquanto junta seus papéis e os enfia, furioso, dentro da pasta, o advogado resmunga entre dentes: "Sinto-me nesta vara como o flautim do czar". O magistrado pede que ele esclareça o que quer dizer. Ele recusa. O juiz insiste. E o advogado, constrangido, acaba contando a história do flautim do czar.
Aqui vai ela. "Os mongóis estavam invadindo a Rússia. Numa determinada batalha, em que os russos levavam a pior, a banda, sentindo a derrota, executou com impressionante vigor o hino do czar (embora à época das invasões mongóis ainda não houvessem czares nos principados russos, a história vai como foi contada). Essa arremetida cívico-musical empurrou os combatentes para a reação e para uma inesperada vitória. O czar, sabendo do fato, mandou presentear os integrantes da banda com tantas moedas de ouro quantas coubessem no seu instrumento de trabalho. O sujeito da tuba ficou rico e o do flautim não recebeu uma moedinha sequer. Meses mais tarde, em nova batalha, repete-se a situação, mas foi a banda mongol que levou vantagem. Desta feita, encolerizado com a derrota, o czar determinou que cada membro da banda fosse punido com a introdução do respectivo instrumento de trabalho no - digamos assim - trecho final de seu tubo digestivo. E a pena só pode ser cumprida no infeliz do flautim".
É lamentável e é preocupante, mas essa anedota reflete a realidade comum no judiciário brasileiro, com a sua excessiva politização, com o pouco respeito à lei escrita, com o uso indevido e o abuso interpretativo dos princípios constitucionais segundo a ideologia de cada um (prática que acaba de ser solenizada pelo próprio STF). O nome do monstrengo gerado é este: insegurança jurídica. Como natural consequência dela, o cidadão, antes de agir, em vez de ler a lei, ou de ouvir um advogado, deve consultar o juiz.
Autor: Percival Puggina (66) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões. Difusão. Geraldo Porci de Araújo. 23/5/2011
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