Para quem não lembra, o projeto de lei que se tornou conhecido como da "Ficha Limpa" foi aprovado na Câmara dos Deputados com 412 votos a favor e nenhum contra. Depois, tramitou no Senado e saiu de lá consagrado com um placar de 76 votos a zero. Está bem, nem toda unanimidade é burra, mas nessa aí, obviamente, havia alguma coisa estranha. À época, pensando a respeito, deduzi que a porção menos virtuosa, menos seráfica, dos dois plenários votara convencida de que a lei não seria para valer. Ela não haveria de passar pelo rigoroso crivo do STF. De fato, para o pleito de 2010 não passou. Mas agora, em 2012, retornou às portas do Supremo e... Surpresa! Colheu a bênção de sete ministros. Esqueceram-se os, fichas-sujas, de que os membros da nossa corte constitucional às vezes fecham um olho para o texto e decidem segundo a própria testa e gosto. No caso, afortunadamente, em perfeita consonância com o anseio nacional. Mas cá entre nós, essa lei não é constitucional porque esteja de acordo com a Constituição, mas porque o Supremo declarou que está.
Porém
- ah! Porém, como talvez dissesse o Paulinho da Viola, mesmo que os ministros
escrevam em linhas direitas, os corruptos trafegam sobre linhas tortas. E eu
temo que a Lei da Ficha Limpa produza como resultado apenas uma renovação dos
quadros corruptos do país. Estaremos trocando corruptos de ficha encardida por
corruptos com ficha novinha em folha. Quando digo isso, as pessoas me olham com
incredulidade. Elas estão convencidas de que é a maldade humana que corrompe
nossas primorosas instituições. A modelagem institucional do país não entra no
foco de suas análises. O cidadão brasileiro, em via de regras, pensa, em nomes,
em pessoas, em indivíduos.
Quando
avança um pouco mais pensa em ideias, princípios, valores. Mas raramente se
detém a examinar nossas instituições. Por esse motivo, estamos sempre tentando
consertar as consequências e desatentos às causas dos problemas. É como se proclamássemos: "Abaixo as
consequências! Longa vida às causas!" Se examinarmos a realidade nacional
desde essa outra perspectiva, na perspectiva das causas, ficará mais fácil perceber
que mantido o modelo institucional, são remotas, aleatórias, as possibilidades
de que não convirjam para a cena política novos figurantes com motivações
análogas às daqueles que serão substituídos. No pernicioso conjunto das fichas
sujas, a mais suja de todas é a ficha do nosso modelo institucional, onde os
bons frutos são verdadeiros lírios do pântano e onde os estadistas rareiam deslocados.
Que
são para outras esferas. de atuação por um sistema, que os repele. Trata-se de
um conjunto de grandes males que parecem ter sido colhidos a pinça para
produzir os efeitos que, em vão, tentamos combater: eleição proporcional de
deputados tendo como circunscrição todo o território da unidade federada onde
cada um reside; multipartidarismo que congestiona, que polui, pelo excessivo
número de legendas e candidatos, toda a "vitrine eleitoral",
impedindo o efetivo confronto entre candidatos e propostas; estímulo (pelo
sistema proporcional) à representação política dos grupos de interesse, em
flagrante contradição e agressão ao bem comum; atribuição, a uma só pessoa, das
funções de chefia de Estado, de governo e da administração; escolha dessa
pessoa pelo sistema majoritário, independentemente da maioria parlamentar, que
precisa ser composta por arrendamento das funções de governo e administração, e
mediante uma cesta de favores cada vez mais robusta. Soma-se a isso feixe de
poderes políticos, econômicos e financeiros nas mãos da presidência da
República. É uma convergência que vai no, contrapelo da democracia e do federalismo.
Concentração de poder antônimo, de ambos e exerce atração irresistível aos mal
intencionados. Todo nosso aplauso, então, às exceções, aos, fichas-limpas, num
sistema que vai continuar gerando fichas-sujas.
Autor:
Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site articulista
de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra
o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões. Publicado
originalmente na edição de março da revista VOTO. Difusão; Geraldo Porci de Araújo. 31/03/2012.