Gosto
de analogias. E foi essa que me ocorreu quando li, em ZH, que sobram vagas para
cotistas na UFRGS. Pode? No Brasil pode. Calça e sai andando. Aliás, com as
tais de cotas, criou-se uma inadequação nas duas pontas do fio em que se enreda
e desequilibra a sociedade brasileira.
Quem
assistisse às sessões nas quais o STF se manifestou pela constitucionalidade
das cotas no vestibular da UnB poderia imaginar que a Lei Áurea; decorridos 124
anos, ganhava um upgrade decisivo e definitivo. Era como se a desigualdade
social causada pelos séculos de escravidão estivesse sendo resolvida por dez
homens e uma sentença. Não, não estou exagerando.
Quem
exagerou na retórica e na cena foram os ministros. Com a adoção de cotas,
reiteradamente proclamada como transitória para não ser inconstitucional
(palavras dos próprios, seguindo o relator), servia-se, enfim, "justice
social à La suprême" no cardápio da universidade brasileira. Tudo
provisório porque, graças a essa breve degustação, o Brasil logo apresentaria
ao mundo uma fisionomia mais simétrica.
Não
fosse provisório, seria inconstitucional, claro... Retórica de fancaria,
enganosa, mas ao gosto da tese e da turma. É bom que saibamos: hoje,
constitucional é o que a maioria do STF tem por justo.
Ou
por necessário. Ou por conveniente. Ou por correspondente ao clamor das ruas.
Ou por imperioso ensinar às ruas. A escolha de qualquer desses critérios
depende do caso e da opção de cada ministro. Basta, depois, para explicar o
inexplicável, pinçar os dóceis princípios constitucionais e manipulá-los como
massinha de moldar.
Não
subestimem a situação aplicando-lhe certas ideias que andam por aí a respeito
de insegurança jurídica. A coisa é bem mais grave. Querem uma evidência? Os
canais de tevê das duas casas do Congresso perdem audiência. É no canal do STF
que acontece a real action, onde estão ás novas celebridades, e onde as grandes
questões se decidem.
Que
parlamento, que nada! E não esqueçam: o sistema de indicação dos ministros do
Supremo foi concebido quando a reeleição presidencial era vedada. Em tese, a
cada quatro anos mudariam os critérios de escolha. Hoje, oito dos onze membros
da corte foram recrutados pela corrente política que encilhou o poder há mais
de uma década.
Por outro lado, enquanto sobra sapato na ponta
da universidade, a ponta do ensino fundamental anda de pé no chão. Para cada
beneficiário de cotas raciais em atos de formatura do Ensino Superior, centenas
de crianças com produção de melanina semelhante à do formando estão recebendo
uma educação inicial de péssima qualidade. É equivocado afirmar que se
cristalizam assim as injustiças sociais.
Assim
elas se reproduzem! Multiplicam-se, celeremente, na falta de planejamento
familiar e numa realidade socioeducacional que só é vista de julho a setembro,
em ano de eleição. O STF deu mais uma prova de que a justiça discrimina. Se
duvidar, pergunte às ruas. No subsolo do Brasil, nas senzalas do século 21,
quem não faz discriminações, raciais ou sociais, leitor, é a injustiça.
Ali,
brancos, pretos e pardos são irmãos na miséria. Porque ocupam a franja do
tecido social dispõem, do mesmo ensino público de péssima qualidade, abandonado
pelo caminho por milhões de crianças, analfabetas funcionais, que ficam sem o
molde da chave que abriria a porta dos salários dignos e dos méritos
acadêmicos. Não fosse bastante, ainda serviram como cobaias para experiências
pedagógicas tão fajutas e ruinosas quanto ideológicas e renitentes. Zero Hora,
06/05/2012. Autor: Percival Puggina. Difusão: Geraldo Porci de Araújo. 07/05/2012.
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