quarta-feira, 9 de maio de 2012

SAPATO 42 PARA PÉ 37



Gosto de analogias. E foi essa que me ocorreu quando li, em ZH, que sobram vagas para cotistas na UFRGS. Pode? No Brasil pode. Calça e sai andando. Aliás, com as tais de cotas, criou-se uma inadequação nas duas pontas do fio em que se enreda e desequilibra a sociedade brasileira.
Quem assistisse às sessões nas quais o STF se manifestou pela constitucionalidade das cotas no vestibular da UnB poderia imaginar que a Lei Áurea; decorridos 124 anos, ganhava um upgrade decisivo e definitivo. Era como se a desigualdade social causada pelos séculos de escravidão estivesse sendo resolvida por dez homens e uma sentença. Não, não estou exagerando.
Quem exagerou na retórica e na cena foram os ministros. Com a adoção de cotas, reiteradamente proclamada como transitória para não ser inconstitucional (palavras dos próprios, seguindo o relator), servia-se, enfim, "justice social à La suprême" no cardápio da universidade brasileira. Tudo provisório porque, graças a essa breve degustação, o Brasil logo apresentaria ao mundo uma fisionomia mais simétrica.
Não fosse provisório, seria inconstitucional, claro... Retórica de fancaria, enganosa, mas ao gosto da tese e da turma. É bom que saibamos: hoje, constitucional é o que a maioria do STF tem por justo.
Ou por necessário. Ou por conveniente. Ou por correspondente ao clamor das ruas. Ou por imperioso ensinar às ruas. A escolha de qualquer desses critérios depende do caso e da opção de cada ministro. Basta, depois, para explicar o inexplicável, pinçar os dóceis princípios constitucionais e manipulá-los como massinha de moldar.
Não subestimem a situação aplicando-lhe certas ideias que andam por aí a respeito de insegurança jurídica. A coisa é bem mais grave. Querem uma evidência? Os canais de tevê das duas casas do Congresso perdem audiência. É no canal do STF que acontece a real action, onde estão ás novas celebridades, e onde as grandes questões se decidem.
Que parlamento, que nada! E não esqueçam: o sistema de indicação dos ministros do Supremo foi concebido quando a reeleição presidencial era vedada. Em tese, a cada quatro anos mudariam os critérios de escolha. Hoje, oito dos onze membros da corte foram recrutados pela corrente política que encilhou o poder há mais de uma década.
 Por outro lado, enquanto sobra sapato na ponta da universidade, a ponta do ensino fundamental anda de pé no chão. Para cada beneficiário de cotas raciais em atos de formatura do Ensino Superior, centenas de crianças com produção de melanina semelhante à do formando estão recebendo uma educação inicial de péssima qualidade. É equivocado afirmar que se cristalizam assim as injustiças sociais.
Assim elas se reproduzem! Multiplicam-se, celeremente, na falta de planejamento familiar e numa realidade socioeducacional que só é vista de julho a setembro, em ano de eleição. O STF deu mais uma prova de que a justiça discrimina. Se duvidar, pergunte às ruas. No subsolo do Brasil, nas senzalas do século 21, quem não faz discriminações, raciais ou sociais, leitor, é a injustiça.
Ali, brancos, pretos e pardos são irmãos na miséria. Porque ocupam a franja do tecido social dispõem, do mesmo ensino público de péssima qualidade, abandonado pelo caminho por milhões de crianças, analfabetas funcionais, que ficam sem o molde da chave que abriria a porta dos salários dignos e dos méritos acadêmicos. Não fosse bastante, ainda serviram como cobaias para experiências pedagógicas tão fajutas e ruinosas quanto ideológicas e renitentes. Zero Hora, 06/05/2012. Autor: Percival Puggina. Difusão: Geraldo Porci de Araújo. 07/05/2012. 

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