DA
DEMOCRACIA
Percival
Puggina, Óleo em tela Garret Vam
Henthorest, 1622. “ Queres Cantar Louvores a Deus? Sendo vós mesmos a cantar que ides Cantar” St.
Agostinha, esc. JV Natal 2011.
"Mentem,
sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegremente mentem. Mentem tão
nacional/mente que acham que mentindo história afora, vão enganar a morte
eterna/mente." (Do poema A implosão da mentira, de Affonso Romano de
Sant'Anna, escrito em 1980) Para a jornalista Ann Landers, a verdade é nua, ao
passo que a mentira é sempre bem vestida. Com efeito, a mentira é vestida para
seduzir e induzir ao erro.
Há
um problema grave na vida social, portanto, quando a mentira se vulgariza,
ganha status de direito e passa a ser tolerada como conduta normal. Na minha
infância, a mentira determinava repreensões severas e era sancionada no
catálogo das penas. Mas o sermão acabava sendo ainda mais contundente do que a
punição. Hoje, a mentira pode ser pública, pode ser publicada, pode aparecer
nas manchetes.
Pouco
importa. Ela é acolhida entre as artes e ofícios da vida social. Poderia estar
falando de futebol e das mãos do atleta, espalmadas e erguidas, significando
"Nem toquei nele!" quando joga o adversário para fora do campo com um
pontapé que todos viram. Essa é uma das mais correntes e curiosas expressões da
mentira. Mentira gestual, silenciosa. Mas não é sobre futebol que escrevo,
embora o retângulo gramado, que nos desperta tantas paixões, seja palco de
algumas mentiras cabeludas contadas ao país.
É
sobre política. Há conheci como espaço onde, não raro, uma mesma verdade
comportava diferentes interpretações, visões incompletas, em versões iluminadas
pelas lanternas das distintas ideologias. Parte da tarefa dos agentes políticos
consistia em tornar mais convincente sua peculiar perspectiva perante o juízo
soberano do eleitorado. Tolerava-se, dentro de certos limites, de uma, certa
diferença entre a conduta de quem chegava ao governo e o discurso que fizera na
oposição. Nesse caso, as fronteiras do juízo moral precisavam ser um pouco
flexíveis em função do que houvesse dentro dos armários da realidade, como
parte oculta da verdade não destapada durante a dialética da campanha
eleitoral.
As
coisas foram mudando. Mente-se industrial e impunemente, como descreve o poema
acima. Mente-se com insistência, corroborando o dito popular de que é mais
fácil crer numa mentira repetida muitas vezes do que numa verdade desconhecida
ou pouco proferida. Julgo ser isso que o poeta chamou de mentir história afora.
Uma
coisa é o que assumimos, individualmente, como verdadeiro; outra é a mentira.
Uma coisa é o ajuste fino entre o discurso e a ação, imposto pela realidade;
outra é a incoerência absoluta.
E
tem mais: uma coisa é estar no jogo democrático sendo democrata; outra é usar a
democracia contra a democracia. A mentira, a incoerência e os falsos
democratas, que querem calar o contraditório, fraudam o processo dentro do qual
se desenrola a soberania popular e alteram o resultado do jogo político assim
como o atleta que simula pênalti não sofrido frauda o resultado da partida.
A
política brasileira teria muito a ganhar se nos tornássemos moralmente mais
exigentes em relação aos desdobramentos do debate político. O dinheiro na
gaveta ou alhures não é a única forma de corrupção que precisa ser combatida. É
bom que a avaliemos com a gravidade que tem. Mas sem perder de vista que há
outras. A democracia também é corrompida pela mentira, pela incoerência e pelos
não democratas que dela se valem para cobrar direitos que não franqueariam se
deles pudessem dispor. Zero Hora, 18/12/2011
Autor:
Percival Puggina. Difusão: Geraldo Porci de Areaújo
Nenhum comentário:
Postar um comentário