sexta-feira, 29 de maio de 2009

A INDIGNAÇÃO E SEU OBJETO DIRETO

A INDIGNAÇÃO E SEU OBJETO DIRETO
Revista Voto, edição de agosto/2007. Não, leitor, não pretendo discorrer sobre gramática. A palavra indignação está na ordem do dia das pessoas que ainda preservam certa sensibilidade perante os escândalos que, com freqüência cada vez maior, chegam ao seu conhecimento. Cobra-se essa indignação.
Confia-se em que ela, tendo como objeto direto a moralização das condutas dos agentes públicos, resultará em punições exemplares e no juízo final dos maus. Cá entre nós: você, sinceramente, crê nisso? Tenho em mãos um levantamento de todos os fatos noticiados como escandalosos (nem todos, de fato, correspondem a isso embora tenham sido tratados como tal) ocorridos no Brasil nos últimos trinta anos. São mais de duzentos e ocupam oito laudas, agrupados segundo os mandatos presidenciais em que vieram a público, e crescem em número, a cada período governamental, numa proporção quase geométrica.
Todos suscitaram a indignação de que estamos tratando e se dissiparam nas brumas do esquecimento, nas dobras dos processos, ou sumiram sob essa quinta ponta do tapete que são os “laranjas” de cada denúncia. Há bem poucas semanas, uma importante operação da Polícia Federal, a operação Hurricane, que investigou a máfia dos bingos, acabou encarcerando 25 pessoas, entre as quais quatro magistrados e um procurador regional da República. Esses cinco foram imediatamente soltos por terem foro privilegiado. Restaram vinte.
Um deles ingressou com pedido de hábeas corpus junto ao STF. E o ministro Marco Aurélio Mello libertou não apenas o requerente, mas determinou a soltura dos outros 19. Interpelado sobre o mal-estar que o fato causara na opinião pública, o magistrado respondeu que não lhe interessavam os ruídos da turba. Aí está, carimbado pelo cartório da nossa maior corte de justiça, o certificado de nulidade das indignações sociais.
Não, não estamos obrigados a escolher entre o linchamento pelo juízo das ruas e a impunidade que se instalou nos foros especiais, na dormência dos procedimentos e na justiça que não se concretiza. Ademais, a indignação dos cidadãos não precisaria ser – e mesmo quando ocorre não é – o carvão indispensável para movimentar a Maria Fumaça das instituições pelas sinuosas curvas dos processos policiais e judiciais.
Como exigir-se da cidadania o dever de portar, em tempo presente da memória, um a um, os escândalos que, às centenas, pendem de esclarecimento, julgamento e punição? Os cidadãos têm o dever cívico de cumprir bem suas obrigações na vida social, cuidar de suas famílias, agir com correção e competência nas suas atividades profissionais. Têm direito ao lazer, à curtição de seus gostos, à vivência de sua fé, ao convívio com seus entes queridos.
E têm o direito de integrar uma sociedade cujas instituições operem com eficiência independentemente de sua intervenção direta ou de suas demonstrações de indignação na mesa da refeição familiar, nos corredores do escritório ou na fila do ônibus. Sua memória não substitui nem pode substituir o papel que corresponde aos cartórios judiciais.
Há um mundo distante onde isso é assim mesmo, onde as instituições cumprem suas tarefas porque foram concebidas para cumpri-las.
A opinião pública é informada pela imprensa, essa informação forma juízo político num sentido amplo, e a vida segue normalmente porque as estruturas do poder agem independentemente da vontade das pessoas.
Se quisermos dar eficácia ao que sentimos perante o que vemos acontecer no país, devemos fazer com que o objeto direto dessa indignação sejam as nossas instituições – o sistema de governo, o sistema eleitoral, os códigos penal e de processo, os foros privilegiados. Juntos, com o formato que têm, eles são a porta por onde se expulsam os estadistas, se atraem os demagogos, se favorecem os corruptos e os corruptores, se debilita a moralidade social, se robustece a bandidagem e se torna calosa e insensível, perante tantos e tantos escândalos, a alma nacional. Percival Puggina.

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