quinta-feira, 28 de maio de 2009

APUPOS NO MARACANÃ

APUPOS NO MARACANÃ
Percival Puggina. Zero Hora, 22/07/2006
Posso cogitar dezenas de motivos para as seis vaias que o público do Maracanã dedicou às aparições do presidente Lula no telão do estádio. Posso buscar tais motivos na trajetória política do próprio mandatário, que jamais levou livre qualquer de seus antecessores na cadeira que hoje ocupa e reocupa. Posso buscar tais motivos na conduta agressiva e tantas vezes desrespeitosa que marcou o partido político por ele fundado e os movimentos sociais a que deu cria. Posso buscar tais motivos na conduta farisaica de certas vestais que caíram na gandaia tão-logo as luzes do poder evidenciaram não haver mais cinto nem castidade. Há motivos passados, presentes e póstumos.
Houve, inclusive, quem apontasse razões sociológicas (seria um sinal de contrariedade da classe média). Estaríamos, então, perante um conflito de classes, sempre ao gosto das análises marxistas: a classe média teria se reunido no Maracanã para apupar o líder dos muito pobres e dos muito ricos da pátria. Um fenômeno que, se real, teria provocado cãibras nos neurônios do próprio Marx.
Prefiro examinar o episódio não sob o prisma dos motivos sociais ou políticos, mas na perspectiva de suas causas institucionais. Elas são permanentes e bem mais relevantes do que uma demonstração de desapreço que logo estará esquecida. Aquele era um ato oficial, de expressão, com relevo mundial. Deveria ser aberto, com pompa e circunstância, pelo Chefe de Estado do país anfitrião. No entanto, os apupos de um estádio lotado impuseram ao surpreso presidente do Brasil um silêncio constrangido e constrangedor. Isso foi bom? Certamente, não. Claro que pode ter algumas conseqüências políticas favoráveis à oposição e sinalizar um provável desgaste governista. Tudo muito do meu gosto. Mas sob o ponto de vista do ato em si, da imagem do país, teria sido melhor se a abertura dos jogos transcorresse num ambiente de normalidade.
Por trás das vaias do Maracanã está à descarada, perniciosa e sempre desconsiderada promiscuidade que nosso sistema de governo estabelece ao entregar, às mesmas mãos, a chefia do Estado, do Governo e da Administração. Se, a exemplo da maior parte do mundo civilizado, separássemos essas funções, a cerimônia de abertura dos Jogos Pan-americanos seria conduzida por um Chefe de Estado com atribuições de representação da unidade nacional e não exposto às vicissitudes inerentes às tarefas de governo. Os povos frequentemente vaiam seus governantes, mas não seus chefes de Estado.
Nós ainda não conseguimos compreender aquilo que o Primeiro Mundo descobriu em larga experiência história e que se sintetiza no clássico conceito segundo o qual “príncipes que governam perdem a coroa ou a cabeça”. Com uma fé inaudita e sempre desmentida confiamos tudo à mesma chefia unipessoal e acabamos confundindo entes substancialmente distintos: o Estado, que é permanente, de todos, e não pode ter partido, com o governo, que é transitório e partidário. Nunca deu certo, não está dando certo e jamais dará certo. Vaiamos o político governante e silenciamos o Chefe de Estado. Essa confusão está na raiz da crise de identidade do povo brasileiro, de nossa dificuldade para lidar com o conceito de nação, e da perda do civismo, que só se manifesta quando entra em campo algo politicamente tão neutro quanto uma camiseta verde-amarela.

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