Roubar de alguém sua biografia para dela extrair proveito pode parecer coisa tão rara que sequer se registre como delito nos códigos penais. Mas ocorre e é indecente. Exercer tal apropriação contra pessoas falecidas, impotentes para esbravejar sua indignação e retomar o que é seu, constitui, ademais, um ato covarde. “Quando? Onde? Quem? De quem?”, indagará o leitor, surpreso ante a estranha notícia-crime com que lhe aceno. No entanto, ditadores fazem isso habitualmente, como forma de vincular suas deslustradas imagens a personalidades que tenham conquistado elevada estima e respeito dos povos sobre os quais eles, hoje, se impõem. Citarei dois casos. Quem transitar pelas ruas de Havana verá outdoors, no velho estilo do culto da personalidade, contendo frases de Fidel Castro e José Martí. Martí foi um cubano extraordinário, intelectual de excelente formação, jornalista, escritor e poeta admirável, que liderou com a pena e com as armas a luta pela independência de Cuba. Não há, na galeria dos próceres latino-americanos, outro que, como ele, tenha unido dotes morais, talento literário e disposição de lutar até a morte pela liberdade de seu povo. De fato, morreu como mártir. Pois a biografia de José Martí, defensor da livre imprensa e de livre comércio, para quem o estabelecimento das liberdades públicas era o “único motivo digno de lançar um país à luta”, vem sendo roubada por Castro há meio século, para vincular sua indecente ditadura à nobre causa martiana. Vivesse hoje, com suas idéias e declarada convicção contra o socialismo, Martí estaria vendo quadrado o sol caribenho como qualquer outro que insista em democracia e direitos humanos na terra de Fidel. Alguém duvida? Também nisso Hugo Chávez vai calcando as pegadas de seu mestre cubano. Explora quanto pode a imagem de Bolivar, libertador de cinco nações, para legitimar, na Venezuela que Bolívar queria livre, um programa comunista e totalitário de governo. No entanto, o antagonismo entre ambos, se contemporâneos, seria absoluto. “Como amo a liberdade, tenho sentimentos nobres e liberais”, proclamava o Bolívar legítimo, pelo avesso das tenebrosas motivações chavistas. Embora alguns historiadores modernos atribuam a Simón Bolívar delírios de grandeza análogos ao do tiranete que hoje faz e desfaz na Venezuela, o Libertador apreciava o modelo norte-americano e sonhava com ser o Jorge Washington da América do Sul. Certa feita, inclusive, vociferou seu desprezo ao “povo que obedece e ao homem que manda sozinhora ocasião, como que contemplando o que poderia sobrevir a seu país quase dois séculos após, parafraseou Napoleão Bonaparte: “De lo heróico a lo ridículo no hay más que un paso”.
Desconfie do político que tenta conectar sua imagem à de algum estadista de elevado conceito. O miador, certamente, está querendo se passar por lebre. Autor: Percival Puggina. Difusão: Geraldo Porci de Araújo. 18/11/06,
Desconfie do político que tenta conectar sua imagem à de algum estadista de elevado conceito. O miador, certamente, está querendo se passar por lebre. Autor: Percival Puggina. Difusão: Geraldo Porci de Araújo. 18/11/06,
Nenhum comentário:
Postar um comentário